quinta-feira, 28 de julho de 2011

Quando o "toque" se torna um abuso obstétrico


“(…) A pior recordação que Dora Carranço guarda do nascimento da sua filha Joana, em 2004, são os «vários toques ao longo das 16 horas de trabalho de parto». Sem dilatação, sem dores, Dora foi para o hospital após terem rebentado as águas, mas sem nenhum sinal de parto.
Enquanto lá esteve, sentiu-se «tratada como um animal, com toda a gente a mexer e a emitir uma opinião sem explicar o que quer que fosse». À meia-noite, quando a equipa mudou, Dora teve quatro médicos e quatro enfermeiras a fazer-lhe o toque e a falarem entre si como se mais ninguém ali estivesse. «Uma autêntica violação», descreve. Com a segunda filha, Inês, em 2007, a experiência não foi melhor. Na véspera de completar 36 semanas, teve uma pequena perda de sangue, sem dor associada. Dirigiu-se ao hospital, a conselho da médica que a seguia, e depois de vários toques «muitíssimo dolorosos», por parte de duas médicas «novinhas», as opiniões dividiam-se: «uma dizia que o colo do útero estava mole, outra menos mole». A Inês acabou por nascer poucas horas depois. Dora acredita que os toques contribuíram para acelerar o parto. Felizmente, a bebé nasceu bem e nem precisou de incubadora.
As grávidas, tal como todos os pacientes, têm direitos e um deles é «o direito ao consentimento livre e esclarecido», descrito na Carta Europeia dos Direitos dos Pacientes, no Código Deontológico dos Médicos, no Código Deontológico dos Enfermeiros e na Carta dos Direitos e Deveres dos Doentes,  publicada pela Direcção-Geral da Saúde. Em resumo, os quatro documentos dizem que todos os pacientes devem ser informados e consultados sobre todos os procedimentos a que poderão ser sujeitos.
Mas, na prática, a observação ou exame vaginal, procedimento vulgarmente chamado «toque», é bastante desvalorizado neste aspecto. Histórias como a de Dora são comuns nas maternidades portuguesas. Médicos e enfermeiros pedem apenas às mulheres em trabalho de parto que dêem «um jeitinho» para poder observá-las, sem uma explicação objectiva, e repetem o procedimento vezes sem conta.
(…) A Organização Mundial de Saúde (OMS) determina que «o número de exames vaginais deve ser limitado ao estritamente necessário; durante a primeira parte do trabalho de parto [dilatação], habitualmente, um exame vaginal de quatro em quatro horas é suficiente». No documento Care in Normal Birth – a pratical guide, explica-se ainda que «se o parto decorrer serenamente, profissionais de saúde experientes podem limitar o número de exames vaginais a um. Idealmente, a observação necessária para determinar que existe parto activo, ou seja, dilatação». Apesar disso, o número de toques vaginais a efectuar durante o parto dificilmente gera consenso.
Antes das luvas não se faziam toques
(…) Sobre a recomendação da OMS – fazer uma observação de quatro em quatro horas é suficiente – a enfermeira explica que exige hábitos e conhecimentos que, entretanto, desapareceram: «Em Portugal, perdeu-se a capacidade de avaliar por palpação abdominal. Os colegas que sabem avaliar desta forma não fazem toques, a não ser que estranhem a duração do parto. Esperam que a mulher dê sinais. Antes não havia luvas e os toques eram mesmo restringidos. Hoje tem-se material para tudo», lamenta a enfermeira.
No livro Iniciativa Parto Normal, editado pela Associação Portuguesa de Enfermeiros Obstetras, os toques vaginais são descritos «como uma fonte de ansiedade» para as mulheres, «uma vez que invadem a sua privacidade e intimidade, resultando incómodos e inclusive dolorosos». Assim, apela-se à utilização de outras técnicas menos invasivas para avaliar a evolução do parto, tais como: palpação abdominal, interpretação do comportamento e dos sons maternos (expressão facial, palavras e acções). Lúcia Leite acredita que estes hábitos são recuperáveis «com motivação e incentivo». Inquestionável, para a enfermeira, é a necessidade de solicitar o consentimento da mulher antes de efectuar o exame vaginal: «A mulher tem de autorizar o toque», afirma, admitindo que muitas vezes as pacientes são pressionadas para dizerem que sim. Basta, que o médico ou enfermeiro ponha a questão desta forma: «Vamos fazer o toque sim?»
E se a mulher não quiser ser sujeita ao exame naquele momento? Se achar que já chega de toques? Se o profissional de saúde não estiver a ter a sensibilidade adequada ao momento? Lúcia Leite admite que será «difícil» a uma mulher em trabalho de parto opor-se. «É muito complicado, principalmente quando não há uma relação prévia. Ninguém se conhece, podem surgir mal-entendidos.» O ideal seria que paciente e profissionais de saúde se conhecessem, que tivessem tempo para estabelecer uma relação, que fosse apenas um profissional a acompanhar o parto. Nestas condições, tudo seria mais fácil e fluido. O ambiente seria, com certeza, mais leve e de confiança. «Estas questões são abordadas nos princípios do Projecto pelo Parto Normal», refere Lúcia Leite, explicando que o documento já foi assinado por vários profissionais ligados ao parto e certificado pela Direcção-Geral de Saúde e pela Ordem dos Enfermeiros, mas aguarda a certificação pela Ordem dos Médicos. (…)
Toque para induzir
Nem sempre o toque vaginal serve apenas para observar o colo do útero. «Muitas vezes, vai além disso e o que o profissional de saúde pretende é adiantar o parto e favorecer a indução», acusa Sílvia Roque Martins, uma das fundadoras do projecto Mal Me Quer, que pretende denunciar o abuso obstétrico. Sílvia criou este projecto depois de reflectir sobre o seu primeiro parto «exemplo de tudo o que um parto não deve ser».
Procurou saber toda a informação possível sobre o parto, consultou o seu processo médico e percebeu que tinha sofrido um descolamento de membranas, uma técnica que tem como objectivo descolar as membranas que constituem o saco amniótico. Trata-se de uma forma artificial de acelerar o início do trabalho de parto.
(…) Tanto o descolamento como a rotura de membranas necessitam do consentimento informado da paciente. Mas a experiência de Sílvia Roque Martins e os testemunhos que tem recolhido através do Mal Me Quer contam que, habitualmente, os profissionais de saúde «dizem apenas que vão fazer uma ‘maldade’ e não explicam nem perguntam nada». Esta foi uma das razões que levou o projecto a escolher o toque como primeiro tema a abordar no site www.malmequer.org. «É a forma de abuso obstétrico mais camuflada. As mulheres não percebem. Acham que é um mero processo avaliativo e não questionam», justifica.
Sílvia Roque Martins alerta ainda sobre alguns dos direitos das mulheres em trabalho de parto: «A observação por parte dos estudantes deve ser sujeita a consentimento. A mulher pode não querer ninguém na sala, para além do pai do bebé e da pessoa que a está a assistir. A mulher pode dizer que não quer ser atendida por determinado profissional». Sempre que estes e outros direitos não são respeitados estamos perante um caso de abuso obstétrico.
(…) «Trauma de parto é uma expressão que não diz nada à maioria dos profissionais de saúde ou psicólogos.» O Mal Me Quer tenta ajudar a ultrapassar esta situação e também a evitá-la, dando informações sobre legislação e procedimentos clínicos. (…)
O toque não avalia
A compatibilidade feto-pélvica (proporção entre o tamanho do bebé e a pélvis da mãe).
Quanto tempo falta para o bebé nascer.
Efeitos secundários
Aumento do risco de infecção: mesmo quando realizado com cuidado e com luvas, há sempre o risco de levar microorganismos da vagina ao canal cervical.
Interfere com a progressão normal do trabalho de parto.
Afecta a mulher emocionalmente: o toque invade a privacidade, pode ser desconfortável e obriga a mulher a uma posição pouco facilitadora do parto. Além disso, se se diz a uma mulher que tem quatro centímetros de dilatação e, passada uma hora e muitas contracções, depois de novo toque, se diz que ainda mantém os quatro centímetros, o sentimento vai ser de desânimo, quando o que se pretende é o contrário. (…)”
Patrícia Lamúrias
Revista PAIS & Filhos
17 Maio 2011

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